PARA QUÊ CRIAR UMA RESERVA NATURAL ?
... Ou de como se destrói o património natural que dois anos antes se classificou
Para quê criar uma reserva natural?
Aparentemente, para o município de Loulé, para absolutamente nada, pois pouco tempo depois de estar constituída a reserva natural local da foz do Almargem e do Trafal, assiste-se ao inicio da construção de um enorme apoio de praia, ao desmatamento de umas boas dezenas de pinheiros para construção de um parque de estacionamento, ao anúncio de que está previsto mais um apoio de praia para o outro lado da lagoa e anuncia-se a fatalidade dos direitos adquiridos, o mesmo é dizer que aqui em Loulé como em muitos outros municípios do Algarve, subsistem licenças de loteamento com décadas em cima, licenças que ficaram a jazer durantes anos e anos, licenças que foram emitidas quanto não existiam PDM's, muito menos planos de ordenamento da orla costeira, licenças que estabelecem soluções urbanísticas impensáveis aos olhos dos dias de hoje, e ainda assim, mesmo com todos estes contras, os municípios e Loulé não é excepção, teimam em manter ligadas à máquina.
Um dia aparece alguém com um desfibrilador e pronto, temos a ressurreição do aborto urbanístico, o disparate elevado a "direitos adquiridos".
Aliás, tenho para mim que, quer os direitos adquiridos legítimos, como os fantasiados, dão um jeitão aos autarcas que, como normalmente, pouco ou nada sabem de urbanismo e das regras com que se cozem, dependendo exclusivamente, de departamentos técnicos, ética e moralmente corruptos, quando não corruptos na perspectiva penal do termo, e escudam-se neste conceito, como se se dissesse "não há nada a fazer. São os direitos adquiridos."
Ora, antes de entrar concretamente no "Caso Almargem - Trafal" queria deixar claro que os autarcas são fieis depositários do território e como qualquer bom fiel depositário devem cuidar e manter aquilo que está a seu cargo. Devem cuidar que, aquilo que foi entregue à sua guarda, não desapareça e não fique de tal modo danificado que fique imprestável e deixe de puder ser usado para o objectivo com que foi criado.
Mas mais. Como se trata de território e como o território não desaparece fisicamente, está cá hoje e estará cá daqui a 100 anos, pelo que os autarcas, para além de fiéis depositários de território, são fieis depositários das aspirações que as gerações vindouras têm ou poderão ter sob um determinado território.
Por isso é que quando surgem casos como o "Caso Almargem - Trafal", o dano é tremendo, porque não só se danifica o património natural hoje, como se destrói as aspirações das gerações futuras sob esse mesmo território. É isso que está sucedendo em plena reserva natural local da foz do Almargem e do Trafal.
A análise feita não é exaustiva e baseia-se em informação recolhida, quer das redes sociais, em termos daquilo que é o desenvolvimento do que está a ser feito, na lei e nos regulamentos, e nos resultados de uma reunião havida no âmbito da Comissão Directiva da Reserva da Foz do Almargem e do Trafal.
Mas ainda antes de entrar propriamente na questão sobre o que está a ser feito e o respectivo cabimento urbanístico, gostaria de chamar a atenção para o seguinte: esta reserva natural municipal tem um regulamento de gestão (Regulamento 906/2024 de 14 de Agosto de 2024). No âmbito desse regulamento existe um órgão que é precisamente a Comissão Directiva, prevista no art. 6.º. Dessa comissão faz parte uma associação ambiental de carácter regional, associação que está acompanhada ou, melhor dizendo, rodeada pelo Presidente da Câmara ou quem este indique, pelo Vereador do ambiente sempre que o Presidente delegue neste a representação nas reuniões da comissão, o presidente da junta de Quarteira, e um vogal indicado pelo Presidente da Câmara, que no caso, julgo ser esta associação.
Pergunta:
O que é que esta associação está a fazer AINDA nesta comissão depois dos resultados miseráveis da reunião que tiveram no dia 27 de Maio de 2025? O que é que está à espera para, com estrondo e com o máximo de escândalo e indignação, não abandonar a comissão?
Francamente, há coisas que não se entendem, como a falta de espinha dorsal ou de dignidade. Costuma dizer-se que quem muito se baixa o cú lhe aparece e esta associação ambiental de caráter regional pôs-se de cócoras. Ou, então, entendem-se à luz de outros valores e de outros princípios, ou falta deles.
Ainda sem entrar dentro da matéria propriamente dita, ou seja, o que está a ser construído e como está a ser construído, verifico que de acordo com o tal regulamento da reserva natural, a comissão directiva deve responder "a pedidos de actos ou actividades condicionadas na Reserva Natural, em conformidade com o disposto no presente regulamento" e esta comissão consultiva deve "submeter a parecer prévio do conselho consultivo e do conselho cientifico os actos ou actividade previstas na alínea anterior, sempre que a sua natureza ou dimensão o justifique".
Pergunta:
Alguma destas imposições foi cumprida? Foi a comissão directiva consultada durante o processo de licenciamento do apoio de praia? Processo que, aliás, foi pedido à Câmara Municipal de Loulé, e esta escudando-se em idiotisses burocráticas recusa-se a entregar aos requerentes?
Foi pedido parecer ao conselho consultivo e ao conselho cientifico antes de ser tomada a decisão de autorizar a aberração que cresce todos os dias na praia do Almargem? Ou, por um acaso, o que está a ser feito é de tal forma insignificante que não justifica chatear o pessoal do consultivo, muito menos do cientifico?
Percebem o que se está a passar e ainda não chegamos à analise do caso propriamente dito? Uma inutilidade este regulamento. Que ninguém impõe, cujas competências não são exercidas e cujos órgãos não são chamados a actuar quando, por imposição legal, deviam intervir na formação das decisões e na formação de actos administrativos que tenham como zona de implementação a reserva e a sua dimensão e natureza o justifique.
Isto foi discutido na tal reunião?
Afinal, para quê criar uma reserva natural?
Ao que parece, a Câmara Municipal de Loulé argumenta que o plano de ordenamento da orla costeira prevê apoios de praia e argumenta que, na hierarquia da leis, o POOC está acima do regulamento da reserva natural.
E não é que tem razão em ambos os argumentos?!
E argumenta mais. Argumenta que a existência de uma reserva natural não coloca em causa o apoio de praia. Ora, se isto foi dito assim, é necessário chamar a atenção para o seguinte.
A reserva natural pode não colocar em causa o apoio de praia mas o apoio de praia coloca em causa a reserva natural.
Realmente o POOC prevê a instalação de apoios de praia, inclusivamente na Praia de Almargem. Mas essa previsão não colide ou não deve colidir com o que está estabelecido no regulamento. Aliás, deve existir uma coexistência pacifica entre um e outro. Para mais, quando o regulamento do parque foi preparado, com certeza, teve em consideração o que o POOC previa para a zona da Praia do Almargem. Nem podia ser de outra forma.
Mas o que parece não ter sido discutido durante a reunião e aquilo para que ninguém, que eu saiba, chamou a atenção, é para o facto de o POOC prever vários tipos de praias, um género de classificação tendo em conta a maior ou menor influência de núcleos urbanos e a maior ou menos procura.
De acordo com esta categorização a Praia do Almargem está classificada como de tipo iii).
O que é que isto quer dizer?
Uma praia de tipo iii) corresponde a uma praia seminatural, praia que não se encontra sujeita a influência directa de núcleos urbanos e é uma praia que está associada a sistemas naturais sensíveis. Repetimos. Associada a sistemas naturais sensíveis.
Para quê criar uma reserva natural?
Sendo uma praia de tipo iii) o licenciamento de apoios de praia tem de estar em consonância com aquele tipo e com os valores que se pretendem proteger. Lembram-se? Sistemas naturais sensíveis...
E é o próprio POOC que estabelece várias modalidades de apoios de praia. Mínimos, simples, completo, com equipamento associados, balnear...
Conclusão.
O monstro que está a ser construído não se coaduna, nem cabimento numa praia do tipo iii);
Outra conclusão. A Câmara Municipal de Loulé poderia ter imposto o tipo de apoio de praia que se coadunasse com uma praia de tipo iii). Não o fez e não o fazendo cometeu uma ilegalidade. É que o poder discricionário da administração tem limites e no meu entender, neste caso, esses limites foram largamente ultrapassados.
O próprio POOC tem um artigo que diz qualquer coisa como:
Artigo 75.º
Constituição de unidades balneares
1 - As unidades balneares constituem a base do ordenamento do areal, às quais devem ser associados os apoios balneares, os apoios de praia e os equipamentos.
2 - As unidades balneares são dimensionadas em função da capacidade do areal, não devendo ter capacidade inferior a 350 utentes, salvo os casos em que o conjunto da praia tenha capacidade inferior, constituindo, nestes casos, uma única unidade balnear.
(…)
Mas para além do apoio de praia está a ser construído um estacionamento.
Mais uma vez o POOC prevê a existência de estacionamento. Se consultarmos as fichas das praias, documento que se integra no POOC podemos ler o seguinte:
Mas esperem. "Criação de estacionamento em espaços aplanados de clareira"
Será que estou a ler bem? Podem criar-se estacionamento em espaços onde existam clareiras? Ou seja, onde não existam árvores.
Mas aqui, no "Caso da Praia do Almargem - Trafal" o que é que fizeram? Arrancaram dezenas de pinheiros...para fazer a tal clareira. Ou seja, tudo ao contrário.
Mas eu percebo. O que é um belo apoio de praia sem um belo parque de estacionamento ao pé, por forma a valorizar o belo apoio de praia, mesmo que para isso tenha de ser criada, artificialmente criada, uma clareira?
Neste momento não vou entrar na questão dos direitos adquiridos por via de uma licença de loteamento de 1971. Só digo que a ideia é absurda, embora o direito português do urbanismo viva de absurdos.
Câmara Municipal de Loulé!!!!!
Entre 1971 e 2025 não haverá uma caducidade que se possa aproveitar?
Já verificaram ? Ou, preguiçosos como são, estão a encostar-se aos direitos adquiridos e a enganar a comissão directiva de que fazem parte ao dizerem que disseram aos proprietários dos terrenos envolventes que a constituição da reserva não lhes traria mais "constrangimentos" urbanísticos do que aqueles que já resultam do POOC e do PDM.
Para quê constituir uma reserva natural?
Até breve!